Ontem fui assistir o recém-lançado filme “Uma vida – A história de Nicholas Winton”. Na véspera da Segunda Guerra Mundial, em 1938, o britânico Nicholas Winton (1909-2015), corretor da Bolsa de Valores em Londres, visita Praga, capital da Tchecoslováquia, e testemunha a situação dramática das famílias e crianças que, sob a ameaça da invasão alemã, haviam fugido para lá, vivendo em condições extremamente precárias, com pouco ou nenhum abrigo ou comida. Winton imediatamente se dispõe a resgatar o maior número possível de crianças e enviá-las para a Inglaterra antes de as fronteiras serem fechadas. Com a ajuda de uma equipe, consegue salvar 669 criancas da ameaça de campos de concentração.
O filme retrata essa história real, esse grande feito. Mas conversa diretamente também com a questão dos refugiados em todo o mundo, que hoje somam 25,4 milhões de pessoas, segundo a ACNUR (Agência da ONU para Refugiados).
Trabalhei com refugiados por algum tempo em Londres, entre o final da década de 1980 e início da década de 1990. E o filme trouxe à tona uma infinidade de lembranças da minha vivência com eles, das suas histórias, da sua coragem e resiliência. Saí do cinema com um desejo grande de falar dessa vez não de flores, mas dos refugiados com que lidei, das situações enfrentadas por eles, e o que fazíamos para ajudá-los.
Eu era uma estrangeira vivendo em Londres há 20 anos, professora de inglês, e conhecia bem o sistema, como tudo funcionava no país. Esse era exatamente o perfil que as escolas do governo que ofereciam cursos de inglês para refugiados procuravam – porque não se tratava apenas de aulas de inglês; a ideia era também que, como estrangeira vivendo no país há muito tempo, a pessoa fosse capaz de fazer ao mesmo tempo um trabalho social, orientando os refugiados sobre como funcionava a vida na Inglaterra e lhes dando apoio.
A diversidade entre alunos em termos de nível educacional, social e cultural podia ser bastante grande. Numa mesma turma poderia haver um médico, um torneiro mecânico, um ex-guerrilheiro e até um príncipe.
As aulas requeriam do professor uma energia e um acolhimento especiais – não dava para dar aula só pensando na língua a ensinar. Afastados de suas raízes, de seus familiares, enfrentando uma nova cultura e os traumas de seus desenraizamentos, era importante que sentissem ali uma espécie de ‘família’ e que a escola servisse também como ‘abrigo’ social.
Alugávamos um ônibus grande, tipo ônibus interestadual, para passeios com os alunos – um dia em alguma cidade fora de Londres, um outro dia passeando por Londres, e incluíamos sempre os filhos deles nos passeios.
No passeio que fizemos a Brighton, no litoral sul da Inglaterra, os alunos levaram comidas típicas de seus países e passaram o dia na praia, conversando, comendo, se divertindo. Além da possibilidade de praticarem de forma mais espontânea o inglês e se socializarem, o passeio foi um 'respiro' para as agruras do seu dia-a-dia...
Visando a profissionalização das alunas que queriam trabalhar como costureiras, criamos um curso de inglês para costura, que incluía aulas de inglês para costura e aulas de matemática, e fizemos contato com empresas que potencialmente poderiam empregá-las. Com a informática bem menos avançada na época, o material era todo produzido manualmente, com desenhos das diversas partes de uma roupa e o vocabulário correspondente.
Os alunos com nível de inglês melhor relatavam suas histórias em práticas de inglês oral ou escrito – narrativas dolorosas, comoventes. Um deles entregou todo o dinheiro que possuía em troca de uma promessa falsa de que teria ajuda para fugir do seu país. Uma aluna da Eritreia tinha sido líder de guerrilheiros no seu país e me explicou que lá, nos conflitos armados, a tradição manda que as mulheres liderem esses grupos. Fugiu de uma guerra em que vivia em matas sem quase comida ou água. Mãe solteira, aportou em Londres somente com a filha, um bebê.
Aluna da Eritreia, ex-líder guerrilheira
Em 1992, quando foi deflagrada a Guerra da Bósnia, entraram muitos refugiados de lá na escola; alguns deles, poucos dias antes, tinham perdido a família toda e/ou sua casa. Vê-los ali, na sala de aula, se esforçando para se concentrar, aprender e se estabelecer num novo país em seguida a situações altamente traumáticas me despertava ao mesmo tempo muita tristeza e imensa admiração.
É impressionante a capacidade de superação do ser humano. Uma das cenas mais emocionantes do filme é quando todos na plateia que haviam sido salvos por Nicholas Winton se identificam ficando de pé, hoje adultos, com suas vidas organizadas, tendo superado tanta provação.
Penso que a esperança é a força que move esse processo de superação, o que faz a pessoa sorrir mesmo quando tudo à volta ruiu. E me vem à mente o sorriso dos meus alunos refugiados num dia ensolarado na praia de Brighton...
Alunos na Praia de Brighton
Comments